domingo, 22 de janeiro de 2012

O CÉREBRO E AS DROGAS PARTE 2

O Cérebro e as Drogas 

A modulação dos sinais

Ao serem transmitidas, as mensagens podem ser modificadas no processo de passagem de um neurônio para outro, e é justamente aí que reside a grande flexibilidade funcional do Sistema Nervoso.
Os elementos químicos usados para essa finalidade chamam-se neurotransmissores, e são sintetizados pelo organismo. Para cada neurotransmissor de um neurônio A existe um receptor no neurônio B que é ativado por ele no momento da neurotransmissão, num contato especial que podemos imaginar como o da chave na fechadura, dada a sua especificidade. Esse receptor, uma vez ativado, incumbe-se do prosseguimento da mensagem no neurônio B e portanto ele apresenta o mesmo grau de importância e responsabilidade que o neurotransmissor no fenômeno da neurotransmissão, e forma com ele um complexo estratégico que pode abrir as guardas para um agente estranho que possa simular a sua própria química, uma verdadeira chave falsa como é o caso das drogas, que veremos no decorrer destas leituras.
São os neurotransmissores que transmitem as ordens de serviço dos nervos para os músculos, vísceras, etc., e também são eles que estabelecem a comunicação entre as várias áreas do SNC. É é ai que eles são modulados proporcionando a flexibilidade que estabelece o rumo de um pensamento, uma afetividade especial ou um maior ou menor grau de sensibilidade frente a um estímulo.
Quando o neurotransmissor já está pronto para entrar em ação, ainda no interior da parte sinática do neurônio A, ele recebe a ordem de partida dada pelos íons cálcio (cujo canal é aberto pelo impulso elétrico), e é liberado para a fenda. Ele atravessa a fenda, dá o seu recado no receptor do neurônio B e volta para a sua célula para ser reciclado antes de nova transmissão.
Em condições normais ele não é re-utilizado sem a devida reciclagem em seu neurônio de origem. Alguns neurotransmissores nem voltam, são desnaturados na fenda ou imediações, ou podem se difundir pelo plasma sangüíneo. O fato é que eles devem ser   usados por uma só vez, mas existem procedimentos terapêuticos onde certos neurotransmissores são impedidos do seu retorno para ficarem atuando por mais tempo na fenda. É o caso dos anti-depressivos com relação à serotonina ou alguns outros neurotransmissores como a norepinefrina, e também é o caso da ação de algumas drogas ilícitas como a cocaina, que bloqueia o retorno de um neurotransmissor (DOPA) para reciclagem, concentrando-o na fenda. onde ele continua a agir sobre os seus receptores.

Os neurotransmissores relacionados

Como dissemos anteriormente, os neurotransmissores são sintetizados pelo organismo, mas, como produtos químicos, podem possuir competidores que possuam algumas semelhanças estruturais, suficientes para assumir o seu papel na neurotransmissão, alterando artificialmente essa função. Esse é o caso das drogas psicoativas.
Algumas drogas imitam os neurotransmissores naturais, interagindo com os seus receptores. É o caso da morfina, por exemplo, que se liga aos receptores das endorfinas; da nicotina, que se liga aos receptores da acetilcolina.
Outras drogas aumentam os níveis de neurotransmissores na sinapse, como a cocaina, que aumenta os níveis de dopamina e do Ecstasy, que aumenta os níveis de serotonina na sinapse.
Outras drogas bloqueiam os neurotransmissores, como por exemplo, o álcool inibindo o NMDA, receptor do glutamato, além de imitar os benzodiazepínicos nos receptores do GABA, como veremos.

DOPA ou Dopamina-(Dioxifenilalanina). Nós já vimos que o sistema límbico também pode ser chamado de sistema dopamínico, e isto porque o neurotransmissor dopamina é o mais usado para a comunicação dos neurônios dessa área do encéfalo, que inclui o circuito de recompensa.
A dopamina é responsável por uma série de fenômenos comportamentais e motores (conforme a área do SNC onde está atuando), mas para nós é relevante o conhecimento da sua ligação com o prazer, proporcionando a sensação de euforia; a motivação, a iniciativa.
A dopamina possui dois principais receptores: D1 e D2. Convém lembrar que os medicamentos antipsicóticos agem como antagonistas nesses receptores. Isto quer dizer que a atividade dopamínica incrementa as manifestações psicóticas (quando há predisposição da pessoa).

GABA- É o ácido gama-amino-butírico, neurotransmissor de ação refreadora, inibitória, atenuando os efeitos da excitação quando gerada de forma inconveniente por outros neurotransmissores.
É usado por cerca de 40% dos neurônios do SNC e além do mais, todos os neurônios centrais são sensíveis à sua ação.
O seu principal receptor é o GABA
A que tem uma relação íntima com os canais de cloro, promovendo a sua abertura quando ativado. Como já vimos, a entrada de cloro no neurônio faz diminuir o ritmo de pulsação do seu potencial de ação, o seu potencial elétrico, tornando o funcionamento celular mais lento.
Os receptores GABA
A são também sensíveis aos benzodiazepínicos, os quais potencializam o efeito inibidor do GABA. Os receptores das benzodiazepinas, aliás, situam-se junto aos receptores GABAA.

Glutamato- É o principal neurotransmissor excitatório do SNC. Sua área de atuação concentra-se nas conexões entre a amídala, o córtex pré-frontal, o hipocampo e mais algumas outras estruturas situadas no diencéfalo.
O glutamato age de forma rápida, qualidade essencial para a transmissão de sinais nas regiões onde atua.
Os receptores do glutamato funcionam como mediadores iônicos (como o GABAA é para o cloro) para o cálcio, magnésio e zinco, de forma a resultar um aumento significativo da excitabilidade celular. 
O mais estudado dentre os receptores para o glutamato é o NMDA, alvo de grande interesse entre os pesquisadores em Dependência Química
.

Serotonina ou 5HT- É um neurotransmissor intimamente relacionado ao humor e à afetividade. A maioria dos medicamentos chamados antidepressivos age aumentando a sua disponibilidade na fenda sinática.
A serotonina é encontrada em praticamente todas as fibras nervosas do SNC, porém os corpos celulares de sua origem restringem-se ao tronco encefálico nos núcleos de rafe.
A serotonina apresenta um efeito modulador geral da atividade psíquica influindo em quase todas as funções cerebrais, inibindo-as de forma direta ou indireta, através de estímulo do sistema GABA.
É dessa forma que a serotonina, ou 5HT, regula o humor e o sono, a percepção da dor, a atividade sexual, as funções cognitivas, além de inúmeras outras funções fisiológicas como a temperatura corporal e atividades hormonais. Os seus receptores principais denominam-se 5HT1 e 5HT2.

Acetilcolina- Este neurotransmissor apresenta papel relevante em várias funções do SNC como a memória, por sua atuação no hipocampo e outras áreas de função cognitiva, e do sistema nervoso periférico, como a movimentação neuromuscular. Após o seu uso a acetilcolina é desativada ainda na fenda, através da atuação da enzima acetilcolinesterase. Existem dois tipos de receptores para a acetilcolina: os nicotínicos e os muscarínicos. Os receptores nicotínicos unem-se aos canais iônicos, são de natureza excitatória e são estimulados pela nicotina, entre outros. Já os receptores muscarínicos são de natureza inibitória.

Noradrenalina- As vias noradrenérgicas centrais são originárias de uma formação nervosachamada locus coeruleus no tronco encefálico e seguem para extensa área do SNC através de uma abundante ramificação.
Os seus receptores são divididos em duas classes, receptores α e receptores ß.
A noradrenalina (também chamada norepinefrina) tem uma grande variedade de funções, mas sobressai o seu papel em realizar a integração das várias regiões do encéfalo em resposta aos impactos estressores externos que atingem o indivíduo, bem como restaurar o equilíbrio após essas agressões.
Uma das mais importantes funções fisiológicas da noradrenalina é o controle da pressão sanguínea e uma das mais importantes funções da noradrenalina na esfera psíquica é a sua atuação no hipocampo quanto ao controle dos estados afetivos em ação paralela à serotonina.
A noradrenalina também participa nos processos de sedação e analgesia por ativação dos receptores chamados α2.

B-Endorfinas- Pertencem ao grupo dos opiácios endógenos, junto às encefalinas. 
No SNC as endorfinas concentram-se em algumas áreas do diencéfalo e mesencéfalo, como no nucleus accumbens, acreditando-se que sejam liberadas pela hipófise por serem encontradas nesse local em maiores quantidades. Desempenham um papel importante na regulação da dor.
As B-endorfinas podem entrar em circulação, podendo ser consideradas neuro-hormônios. Apresentam propriedades analgésicas, ao lado de um efeito colateral hipertensivo. A analgesia por meio da acupuntura parece ser mediada por estas substâncias.
Os receptores das endorfinas são os receptores dos opiácios, e os principais denominam-se receptores mu, descobertos antes mesmo de serem descobertas as endorfinas.
As B-endorfinas, assim como a acetilcolina, são desativadas imediatamente após o seu uso, por ação enzimática.

Interatividade neural

Interatividade- A dopamina, por si só, é o neurotransmissor relacionado ao prazer, mas este neurotransmissor também desenvolve atividades em conjunto com a serotonina e a noradrenalina, relacionadas da seguinte forma:
Dopamina + serotonina + noradrenalina: Funções cognitivas. Humor. Emoções.
Dopamina + serotonina: Apetite, sexo, agressividade.
Dopamina + noradrenalina: Motivação.

A associação da serotonina com a noradrenalina, sem a dopamina, relaciona-se com a ansiedade e irritabilidade.

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Onde agem as drogas

"O poder que a dependência química exerce sobre os seres humanos não reside em nosso córtex. O poder da dependência em nossas mentes mora no que foi chamado de nosso cérebro de réptil. O poder localiza-se no campo das transformações celulares em células do meio do cérebro – o nucleus accumbens e o tegmentum superior. Estas transformações estão além do alcance da força de vontade, além do alcance do condicionamento e além do alcance do insight psicanalítico".

Esse foi um trecho da conferência proferida pelo Professor Geoge Vaillant por ocasião da abertura do XIII° Congresso da ABEAD, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1.999.
O Prof. Vaillant, da Universidade de Harvard, é sem dúvida uma das personalidades mais respeitadas entre todos os estudiosos de Dependência Química de todo o mundo e fez duas referências merecedoras de maior atenção:
A primeira relaciona-se ao nucleus accumbens e tegmentum superior (onde está a Área Tegumentar Ventral), estruturas que compõem o já anteriormente exposto Circuito de Recompensa.
Esta área do SNC está relacionada com a sensação de prazer. A sensação de prazer é obtida pela ativação do circuito, que pode resultar da excitação dos seus neurônios pelos órgãos dos sentidos, sexo, sugestão ou por alguma substância em circulação.
Os treinadores de animais nunca deixam de dar algum petisco para o animal que executou direito uma tarefa por eles ensinada. Essa é a recompensa pela realização da tarefa, ou seja, um prazer resultante de um comportamento antecipado. O prazer da ingestão do petisco motiva o animal a realizar novamente o procedimento que lhe conferiu a recompensa e para esta situação nós dizemos que houve um reforço de motivação.
A descoberta do Circuito de Recompensa ocorreu quando James Olds, um psicólogo fisiologista americano, mas então circuito_de_recompensatrabalhando na McGill University, em Montreal, Canadá, usando uma técnica de estímulos elétricos em áreas cerebrais de ratos(com agulhas-eletrodos), na década de 50 do século passado, observou que um dos animais reagiu de modo a procurar por mais estímulos ao invés de fugir deles, como faziam os outros ratos nesse experimento que então fazia (estrutura do sono). Verificando também que a agulha desse animal não foi inserida na área planejada, mas próximo a ela, continuou sua experiência colocando o animal em gaiola apropriada para auto-administração (pressionando uma alavanca) de estímulos por esses animais. Observou, com grande surpresa, que o animal se exauria pressionando a alavanca do contato elétrico num ritmo muito acelerado. A experiência foi confirmada em sucessivas repetições com o eletrodo posicionado naquele local, logo acima do tronco cerebral, no meio do cérebro. Estava descoberto o Circuito de Recompensa.
A partir daí essa região do SNC tem atraído a atenção dos neurocientistas de todo o mundo. Particularmente com relação à Dependência Química, evidenciou-se que todas as drogas com potencial de dependência agem aumentando o nível da dopamina, neurotransmissor do Circuito de Recompensa. 
A segunda referência do Professor Vaillant, a ser melhor esclarecida, é sobre o nosso cérebro de réptil.
Segundo a teoria de MacLean (1.990) o nosso encéfalo atual reflete a evolução que sofreu ao longo das eras, contendo três partes primordiais que funcionam como três computadores biológicos interconectados, cada um com a sua própria inteligência, sua peópria subjetividade, seu próprio senso de espaço e tempo e sua própria memória. cerebro_ triplice
Cérebro: evolução zoológicaPara Restak "o cérebro seria melhor compreendido em termos de três unidades de funcionamento: vigilância, processamento de informação e ação".

Embora interconetados, cada um deles funciona com capacidade própria. podendo preponderar conforme as circunstâncias. 
O mais antigo, chamado de reptiliano oucomplexo R, corresponde ao tronco encefálico e cerebelo, sendo responsável pelos processos de auto-sustentação do corpo, rituais de
 aproximação e acasalamento, os mesmos que já se apresentavam nos répteis há 240 milhões de anos. 
Situado na parte mais alta do tronco encefálico situa~se o mesencéfalo, que contém as estruturas da Área Tegumentar Ventral ou VTA. 
Uma vez ativado por estímulos relacionados à droga, o impulso nervoso parte dessa área para o Nucleus accumbensna base do cérebro, formando o Circuito de Recompensa, e daí segue para o cortex pré-frontal que vai comandar as ações comportamentais relacionadas ao processo de uso da substância. 
Em seguida temos o encéfalo afetivo, do sistema límbico, que data de cerca de 60 milhões de anos, que é compartilhado conosco pela m
aioria dos mamíferos. Esse sistema límbico atúa na expressão das emoções e sentimentos, cuidados com a prole e eventos associativos, necessitando entretanto interagir com o néo-cortex para processamento dessas emoções. Ao contrário do encéfalo reptiliano, o cérebro emotivo é capaz de aprender com a experiência. Por fim temos o néo-cortex, o Dino fumando - visão humorística da ação do cérebro reptilianoencéfalo principal dos primatas, que foram dos últimos mamíferos a aparecerem. Ele constitui cerca de cinco sextos da massa total do encéfalo humano, tendo aparecido há cerca de um milhão de anos. "Um cavaleiro que não controla completamente o seu cavalo"
Ele é responsável pelas funções cognitivas mais nobres. No homem promove a linguagem e o raciocínio, o pensamento abstrato, os cálculos matemáticos, etc. O controle do néo-cortex racional sobre os seus precursores nem sempre é eficiente. 
Para Arthur Koestler, o respeitado escritor-filósofo, ele é "um cavaleiro que não controla completamente o seu cavalo", e aí está a chave para a compreensão do intrigante fenómeno do uso abusivo e dependência de substâncias psicoativas. 


A ação das drogas. A engrenagem da dependência. Tolerância e abstinência.

É simplesmente fantástica a propriedade do SNC de transformar-se estruturalmente para poder cumprir às demandas inerentes ao comportamento das pessoas (que, afinal de contas, foi por ele mesmo determinada).
Desde a auto-regulação imediata, que promove os balanços certos entre as atividades dos neurônios excitatórios e inibitórios visando, por exemplo, um movimento muscular banal, até a formação de circuitos neurais especializados para a execução constante e precisa de movimentos, como os da mão de um pianista, temos toda uma gama de modificações, modelagens ou adaptações, que nós denominamos de plasticidade neural.
Nós já vimos que as drogas agem nas sinapses nervosas modificando a transmissão das mensagens. Trata-se de uma interferência externa que é interpretada pelo cérebro como agressão, uma invasão ao seu território, que deve ser combatida. Inicialmente a reação apresenta-se como aversão, repulsa do indivíduo à droga, mas essa defesa pode perder para a sensação prazerosa que a droga produz no circuito de recompensa, num jogo de custo/benefício.
Podemos indagar: "Porque o hábito se estabelece numas pessoas e em outras não? "É justamente a forma pela qual o circuito de recompensa reage à droga, isto é, quando se estabelece um efeito reforçador, pré-requisito para a repetição do comportamento. Uma determinada droga pode oferecer um maior ou menor atrativo à pessoa, conforme a sua constituição genética relacionada ao neurotransmissor dopamina
A dopamina foi reconhecida por muito tempo como a chave da adicção por ser o neuroquímico cujo nível no cérebro eleva-se por ação do álcool e de todas as outras drogas de abuso. Até recentemente acreditava-se que a dopamina agisse principalmente nas áreas límbicas do cérebro associadas apenas à recompensa e ao prazer. Trabalhos recentes demostraram que a dopamina também assinala a saliência, isto é, a seleção das percepções ambientais que irão determinar o comportamento da pessoa. Dessa forma, além dos estímulos naturais como alimento, sexo e dinheiro, por exemplo, os estímulos aversivos, como a percepção do perigo e o medo, também aumentam o teor de dopamina no cérebro. Acontece entretanto que o álcool e as outras drogas de abuso são reconhecidamente muito mais potentes, inundando o cérebro com dopamina a níveis muito altos e prejudiciais, a ponto de destruir múltiplas regiões de grande importância funcional. A Dra. Nora Volkow, atual diretora da NIDA (National Institute on Drug Abuse), autora dos trabalhos que possibilitaram tais afirmações, afirmou: "Os dependentes de cocaina não estão usando a droga porque ela lhes proporciona maior prazer. Se há alguma coisa, está documentado que a sensibilidade do sistema de recompensa no cérebro está, de fato, diminuida. Eles têm um sistema dopaminérgico hipofuncionante".
Os aditos começam a procurar a droga de abuso porque ela é suficientemente poderosa para ativar o sistema, disse ela. 

Se o efeito reforçador for predominante e as circunstâncias o favorecerem, haverá a continuidade do uso, e então o necessário equilíbrio básico vital será estabelecido por adaptações neurais, destacando-se as modificações nas estruturas das sinapses nervosas.
Podemos imaginar o funcionamento normal do cérebro como uma delicada e preciosa engrenagem.
Quando os elementos fundamentais da transmissão nervosa – neurotransmissores, proteínas e outros mediadores, canais iônicos e receptores, são modificados em número ou qualidade, para as adaptações ao uso recorrente de uma ou mais drogas, é como se fosse criada uma outra engrenagem, agora com a capacidade de funcionar nessa situação, ao mesmo tempo preservando o organismo de um colapso fatal. 
Esta seria a"Engrenagem da Dependência", uma fantasia com intensão didática que temos usado em palestras para apresentar o funcionamento cerebral em regime de adaptação às drogas.
Engrenágem da DependênciaQuando uma droga excita um determinado receptor e repete essa ação por muitas vezes pelo uso freqüente, o organismo reage, diminuindo o número de receptores.
A droga agindo sobre menor número de receptores tem o seu efeito diminuído em relação ao efeito que tinha antes da adaptação. Assim, se o usuário pretender o mesmo efeito que sentia, terá que aumentar a dose da substância. Este é o fenômeno da tolerância, e explica a quantidade crescente de substância usada pelo usuário para a sua satisfação, uma vez que o organismo vai promovendo a sua
 adaptação aos poucos. 
Por outro 
lado, quando um organismo já tem plenamente o seu funcionamento adaptado à droga, ele não funciona bem e sofre com a sua falta, ou mesmo com a diminuição da sua concentração sangüínea, manifestando-se por um estado que nós denominamos de abstinência. Assim por exemplo, se o uso de uma droga excitadora (como a cocaina) se torna constante, pondo em perigo o equilíbrio vital, a plasticidade neural se incumbe de reduzir o número de receptores desses neurotransmissores excitadores, restabelecendo o equilíbrio através da "engrenagem de dependência" para essa droga. Vejamos um caso oposto, o do álcool, que é depressivo. Uma das ações do álcool é a de bloquear os receptores NMDA do glutamato, que é excitatório. O organismo acomoda a situação aumentando o número desses receptoresSem o álcool (abstinência) o glutamato aumenta a sua ação excitatória, pois fica com os seus receptores livres, e ainda dispõe de um maior número deles, por conta da adaptação. O álcool também age sobre os receptores GABAA, potencializando a sua atividade depressora, e sobre os canais de cálcio, reduzindo a emissão de neurotransmissores para a fenda. A adaptação aqui se faz diminuindo o número de receptores (ou modificando a sua estrutura química) e aumentando o número de canais de cálcio. Essas modificações que constituem a "engrenagem da dependência" foram feitas para o ajuste cerebral à presença ativa das drogas, e sem elas, haverá o sofrimento de abstinência, como dissemos. As adaptações já tinham sido previstas por Himmelsbach na década de 40 do século passado, mas atualmente estão sendo plenamente confirmadas na seqüência das investigações em Dependência Química, principalmente nos campos da engenharia genética e da biologia molecular.
A engrenagem da dependência é desativada pelo desuso da droga, mas será prontamente restabelecida ao primeiro sinal de presença da droga em circulação no cérebro, refazendo-se os mecanismos de tolerância e abstinência.
Na realidade, nem será necessária a presença da substância para a reinstalação do processo, basta para isso uma sugestão condicionada, como o encontro com velhas amizades de uso ou a entrada em ambientes de uso.

Há o clássico episódio, muito citado, de um cidadão inglês que sofreu séria crise de abstinência quando foi rever a sua casa de campo, local onde costumava usar cocaina, droga que já não usava há cerca de dois anos.
nida_pet_cocaina_sugeridaCom respeito a isso existe um trabalho muito bem concebido pela Dra. Anna R. Childress , da Universidade da Pensilvânia, Filadélfia. Ela recrutou 14 pessoas dependentes de cocaína e 6 pessoas que nunca haviam experimentado essa droga. Submeteu-as ao exame de tomografia cerebral chamado PET (que tem a propriedade de distinguir as áreas em atividade das áreas em repouso do cérebro), fazendo-as assistir a duas sessões de 25 minutos de vídeo, uma apresentando cenas da natureza e a outra apresentando cenas relacionadas ao tráfico e uso da cocaina.
Todas as 6 pessoas não usuárias declararam não sentir nada de especial enquanto assistiam aos vídeos, ao passo que os usuários de cocaína sentiram-se afetados com a exibição das cenas relacionadas à cocaína, referindo um desejo intenso e urgente de uso ("fissura", como se diz na gíria). A visão de cenas da natureza não afetou de modo significativo nenhum dos grupos. As imagens obtidas pelo PET não revelaram alterações cerebrais nos voluntários não usuários da droga, ao contrário dos importantes achados com relação aos usuários. Nestes, o giro cingulado anterior e a amídala, que são formações do sistema emocional ao qual pertence o circuito de recompensa, mostraram sinais de grande atividade..

 

Como agem as drogas. Efeitos sobre o SNC.

Nós temos nos referido ao Circuito de Recompensa como o local ativador das sensações de prazer e, ao mesmo tempo, o alvo de ação das drogas. Seria válida a conclusão de que a motivação para o uso de drogas seria a busca do prazer, mesmo que espúrio, mas um prazer. Recentemente essa idéia tem sido contestada através de estudos com um tipo de tomografia computadorizada com marcadores nucleares chamada PET, e que fornece dados sobre a atividade funcional de áreas, no nosso caso, cerebrais. 
Em Julho de 2007 a Dra. Nora Volkow, diretora do NIDA, proferiu uma palestra no Encontro Anual da APA (Associação Psiquiátrica Americana), dando conta de que o neurotransmissor dopamina constitui o elo comum entre todas as Dependências químicas, tornando-se hiperativa por ação das drogas. Nesse caso, a elevação pode chegar chegar a níveis suprafisiológicos, danificando e destruindo neurônios. A dopamina é o principal neurotransmissor do Sistema Límbico onde se localiza o Sistema de Recompensa, mas ela sinaliza também, além dos estímulos prazerosos, como os alimentos, sexo e dinheiro, os estímulos aversivos, como a percepção do perigo e o medo, e então a dopamina é a sinalizadora do ambiente para a pessoa, fazendo-a atentar para as ocorrências mais significativas, e esta função cerebral localiza-se no cortex pré-frontal, onde os estudos pelo PET localizaram receptores de dopamina até então desconhecidos, responsabilizado-se esse neurotransmissor à regulação de atividades frontais como a motivação e funções executivas e outras, como veremos adiante, além das já conhecidas atividades não pré-frontais, como as de recompensa ou previsão de recompensa, aprendizado e memória de longo prazo. Mas a memória de curto prazo, chamada mais apropriadamente de memória operacional, é estabelecida pelo cortex pré-frontal, e as suas variadas modalidades estarão comprometidas, tanto pelos efeitos agudos como pelos efeitos crônicos das dependências químicas, prejudicando principalmente o comportamento do dependente relacionado à suas funções executivas, no que se referem ao engajamento (capacidade de engajamento) em comportamento orientado a objetivos, realizando ações voluntárias e auto-organizadas. 
Cortex prefrontalDisse a Dra. Nora que os níveis de dopamina, muito elevados pela ação das drogas, prejudicam, ou mesmo destroem as seguintes áreas cerebrais: o Giro Anterior Cingulado, que governa a atenção e regula a impulsividade, o Cortex Pré-frontal Orbital, mediador da tarefa de avaliar o estímulo ambiental e o Cortex Pré-frontal Lateral Dorsal, que governa as funções executivas e decisórias.
O comprometimento dessas regiões cerebrais corresponde aos sintomas clínicos progressivos das Dependências Químicas, cada uma delas compensando outra, de tal forma que nos estágios iniciais da dependência, quando os danos causados pelo aumento da dopamina ainda são pequenos, o indivíduo ainda possue algum controle sobre as suas ações. Entretanto, com a continuidade do uso, todos esses sistemas acabam progressivamente por se destruir, de tal forma que em estágios mais avançados, o indivíduo não apresenta mais o poder de escolha, perdendo o seu livre arbítrio.
Enfim, disse a Dra. Nora Volkow: a pessoa não usa a droga porque ela lhe dá maior prazer, mas usa a droga porque a droga é suficientemente poderosa para ativar o seu sistema de recompensa que não está respondendo adequadamente aos estímulos naturais. 

Além da ação sobre a dopamina, as drogas também agem por sua interferência na transmissão das mensagens por vários outros neurotransmissores. Elas podem estimular, deprimir ou perturbar o funcionamento dos neurônios, de modo que podemos agrupá-las segundo este critério:


Drogas que deprimem (Drogas sedativas). Álcool, benzodiazepínicos (ansiolíticos), opiácios e inalantes.

Drogas que estimulam: (Drogas estimulantes).Cocaína, anfetaminas e derivados, nicotina.
Drogas que perturbam: (Drogas que alteram a percepção e imagem). Maconha, alucinógenos de origem vegetal ou sintética.

Veremos a seguir os mecanismos de ação das principais drogas, os seus efeitos imediatos e as conseqüências decorrentes da continuidade do uso, sempre relacionadas ao sistema nervoso central.

1- Álcool. 

Quantidades equivalentes de álcoolO álcool difere da maioria das outras drogas psicoativas por não possuir receptores específicos. Ele inibe os receptores NMDA do glutamato, conseqüentemente reduzindo a sua ação excitadora. Ao mesmo tempo ele ativa os receptores GABAos quais,abrindo os canais de cloro, diminuem o ritmo dos pulsos elétricos chamados potenciais de ação, deprimindo o funcionamento do neurônio e causando, desde um efeito sedativo, até um estado de embriaguez, com redução do nível de consciência. O álcool também bloqueia a ação dos íons cálcio na liberação de neurotransmissores estimulantes. O seu efeito sedativo manifesta-se, inicialmente, por relaxamento e desinibição, diminuindo também a sensação de medo e punição.A sensação de euforia proporcionada pelo álcool provém da sua ação ativadora sobre os receptores dopamínicos existentes no nucleus accumbens. Essa ação já tinha sido evidenciada anteriormente em roedores, mas só recentemente pode ser provada com evidências no homem, com o advento de técnicas avançadas (Boileau). Age também sobre os receptores dopamínicos pré-frontais alterando, a curto e longo prazo, as seguintes funções dessa região cerebral:
a) Formação de conceitos (abstração)
b) Fluência verbal (flexibilidade mental)
c) Programação motora (relacionada ao comportamento) 
d) Sucetibilidade à interferência (tendência à distração)
e) Controle inibitório (auto-crítica, inibição de impulsos, comportamento apropriado às situações)
f) Funções executivas (iniciar ações, planejamento, resolução de problemas, antecipação de conseqüências, mudança de estratégias)
g) Memória operacional (memória de curto prazo, arquivamento temporário de informações para o desempenho de várias tarefas) 
h) Autonomia (livre-arbítrio, independência de suporte alheio)

O uso abusivo de álcool também pode reduzir os níveis de serotonina no SNC, e esta redução tem dado margem a numerosos trabalhos relacionados às depressões clínicas e também a atos de violência ocasionalmente verificados sob seu efeito.
Com a continuidade do uso começarão a surgir mudanças na emotividade e personalidade do alcoolista, tanto quanto prejuízos na percepção, aprendizado e memória. O alcoólico terá necessidade de uma observação visual mais prolongada para a compreensão do que se passa ao seu derredor, tendo também diminuída a sua capacidade de percepção espacial, isto é, da sua própria dimensão no espaço que ocupa, esbarrando com freqüência em objetos ou outras pessoas. Tem dificuldade de abstração e resolução de problemas. O estado de dependência leva a uma desmotivação para atividades relacionadas ao sexo que, somada a alterações hormonais e nervosas, afeta de forma importante o relacionamento sexual, tanto nos homens quanto nas mulheres. Essa é provavelmente uma das causas do ciúme patológico. O alcoólico sente que o seu desempenho sexual fica aquém do desejável pela sua parceira, considerando-a vulnerável a uma infidelidade ocasional. 
Um alcoólico também pode apresentar um episódio de alucinações, principalmente auditivas, como o badalar de sinos, alguns ruídos familiares, vozes, etc., que cedem com pouco tempo de abstinência. Chamam-se alucinoses alcoólicas, e servem de alerta para problemas ainda mais graves que possam acontecer, se o hábito não for cortado a tempo. A causa mais freqüente dos problemas com a marcha, entre alcoólicos, reside no sistema nervoso periférico, quando os nervos distais são atingidos pela polineurite alcoólica, mas o cerebelo, o órgão central da coordenação motora, quando afetado pelo uso continuado de álcool, também produz os mesmos problemas, e se estes ocorrerem junto a surtos de pequenos movimentos repetitivos dos olhos (nistagmos) e alguma confusão mental, já estará indicando uma encefalopatia de Wernick, doença que pode ser resolvida com a abstinência, mas se o uso do álcool não for interrompido, o alcoólico será atingido pela psicose de Korsakoff, uma devastadora doença psiquiátrica irreversivel, onde a pessoa esquece as coisas corriqueiras da sua vida diária assim que elas acontecem, reduzindo drasticamente os limites do seu campo de ação. Enquanto a memória remota ainda estiver preservada, as pessoas vivem literalmente do passado.
Essas doenças têm a haver com a deficiência de tiamina, ou vitamina B1, cujo metabolismo é prejudicado pelo álcool. Assim, o alcoólico pode até comer bem e apresentar essa deficiência vitamínica, numa verdadeira fome oculta. Quando a engrenagem da dependência está ativada num alcoólico, ele procura um meio de abastecer-se freqüentemente para não sofrer os sintomas de abstinência, entre os quais destacamos: 
Tremores: constituem um flagelo para os alcoólicos porque, além de denunciá-los flagrantemente da sua condição, limitam o uso das suas mãos, às vezes até mesmo para segurar o copo da bebida que lhe quebrará o jejum, aliviando também os outros sinais de abstinência. Não só as mãos tremem, pode tremer o corpo todo.
Náuseas: estas se apresentam logo ao despertar e impedem uma higiene bucal conveniente. Talvez o alcoolista não chegue a vomitar porque aprende contornar certas situações perigosas, como um desjejum adequado, isto é, muito reduzido ou ausente.
Sudorese: a transpiração excessiva dá ao alcoolista uma sensação de pele úmida, como se diz, um "suor frio", que vai melhorando na medida em que ele vai entrando na sua rotina habitual.
Irritabilidade: em sua residência, o alcoolista pode demonstrar-se irritado com seus familiares ou simplesmente com o ambiente doméstico. Um leve toque de campainha será suficiente para abalá-lo.Em um grau mais acentuado de dependência a sua perturbação de humor poderá atingir patamares mais elevados, apresentando transtorno de ansiedade e depressão.
Na esfera psíquica esses sintomas contribuem de forma muito significativa para aumentar o consumo de álcool.
Convulsões: o limiar para convulsões fica rebaixado nos casos de uso abusivo tanto de álcool como de cocaina, tornando os seus usuários vulneráveis a episódios convulsivos, principalmente nos períodos de abstinência ou de diminuição dos níveis orgânicos de álcool ou da freqüência do uso da substância. 
Delirium tremens: é um quadro grave que pode assumir aspectos dramáticos, afetando os bebedores com longa história de uso que por qualquer motivo interrompam ou diminuam significativamente a ingestão de álcool. 
O DT costuma acometer os alcoolistas após uns poucos dias (média de 3 a 6 dias) de abstinência. Ele se manifesta por rebaixamento da consciência, confusão mental, alucinações principalmente sensoriais como a visão, e mesmo a sensação de contato com aranhas ou outros animais (sempre miniaturizados), tremores, transpiração e muitas vezes, febre.
Essa sintomatologia leva o paciente a uma desorientação no tempo e no espaço. É comum uma interação do paciente com a sua alucinação, conferindo-lhe uma sensação de pavor que aumenta ainda mais os seus tremores.
O paciente precisa ser contido na cama para evitar que se debata ou saia correndo, transtornado pelas suas alucinações.

2-Benzodiazepínicos.

AnsiolíticosOs benzodiazepínicos (medicamentos ansiolíticos) possuem local próprio nos receptores GABAA onde agem e produzem um efeito sedativo. O álcool aproveita estes mesmos receptores benzodiazepínicos do GABA, por não dispor de receptores próprios. Esta condição de similaridade faz com que os benzodiazepínicos sejam usados para minorar o sofrimento da abstinência quando se interrompe o hábito de beber. Os vários benzodiazepínicos existentes no comércio são classificados quanto ao seu tempo de ação em longo, médio e curto prazo. Os benzodiazepínicos de curto prazo possuem uma ação sobre a estrutura do sono e são comercializados como medicamentos hipnóticos ou soníferos, sendo freqüente o seu uso por alcoolistas, cujo sono é prejudicado pela ação inibidora do álcool sobre a serotonina.
A ação dos benzodiazepínicos sobre o sono se faz pelo reforço nos estágios chamados REM, que correspondem aos períodos de sonhos, mas reduzem os estágios não REM, sem sonhos, que são justamente os estágios restauradores dos neurônios em suas atividades. Esta ação parece contribuir para um prejuízo na memória, já afetada pela ação do benzodiazepínico sobre o hipocampo. 

Esses sedativos bloqueiam a entrada dos inibidores do nucleus accumbens, aumentando a liberação de dopamina e promovendo uma sensação de euforia. Os benzodiazepínicos reforçam a ação depressora do álcool, constituindo uma associação merecedora de maior atenção por suas conseqüências clínicas e comportamentais.
A dependência aos benzodiazepínicos processa-se por períodos variados de tempo de uso, podendo ser muito rápida, por ex. sete dias, como num caso apresentado, até cerca de um ano, mas de modo geral nós podemos situar o seu início entre dois ou três meses de tratamento findos os quais, já se deve pensar seriamente na sua interrupção.
Além da dependência, o seu uso abusivo pode ocasionar problemas como o da memória, já referido, problemas psicomotores, problemas quanto ao tempo de reação aos estímulos, velocidade e processamento de informações, estado de vigilância e muitos outros, comuns às outras drogas depressivas do SNC.


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